“Nenhum dinheiro vai nos calar”, dizem pais de Marcelo Dino
A professora universitária Deane Fonseca de Castro e Costa usa dois anéis de coco na mão esquerda, que simbolizam seus filhos. Um deles traz o desenho de um peixinho, apelido do caçula, Marcelo, morto em fevereiro após uma crise de asma. No braço, ela carrega uma pulseira com detalhes em vermelho, amarelo, verde e preto. “São as cores do reggae, ritmo preferido do meu filho”.
Ele estava usando essa fitinha quando morreu, então eu cortei e amarrei no meu pulso”, revela Deane, em sua primeira entrevista desde que perdeu o filho. As lembranças que a professora carrega no corpo são insignificantes se comparadas com a saudade que Marcelo deixou entre os familiares. Diante da dor da perda, Deane e o pai de Marcelo, o presidente da Embratur, Flávio Dino, irão à Justiça para tentar responsabilizar o Hospital Santa Lúcia pela morte do menino. Eles acreditam que uma série de erros no atendimento fez com que uma crise de asma banal tirasse a vida do filho.
Às 6h de 14 de fevereiro, uma terça-feira, depois de uma madrugada tranquila no hospital, Marcelo teve uma nova crise grave. Morreu em apenas uma hora. O que aconteceu nesses 60 minutos ainda é um mistério. Os pais acreditam que um atendimento ágil poderia ter salvado a vida do estudante.
Quando a pediatra voltou à UTI, a vítima já estava com os lábios roxos e praticamente não conseguia respirar. Na última quinta-feira, os pais do garoto conversaram com o Correio por uma hora e meia. Querem provar na Justiça que houve imperícia da unidade de saúde. “Não há, na literatura médica, registro de pacientes que morreram de asma dentro de um ambiente hospitalar, sobretudo em uma UTI. Isso só aconteceu com o Marcelo porque houve negligência e imperícia”, afirma Flávio Dino.
O que diz o hospital
O Hospital Santa Lúcia afirma que o menino Marcelo Dino deu entrada na emergência apresentando crise grave de asma e, por isso, foi encaminhado à UTI. De acordo com a unidade, o paciente passou a noite bem, mas sofreu uma crise pela manhã de 14 de fevereiro e não respondeu ao procedimento de ventilação mecânica. Os médicos, conforme informações do hospital, ainda tentaram ressuscitá-lo e realizaram a entubação.
A equipe afirma que a morte do garoto foi causada por uma asma fatal ou catastrófica e garante ainda que não houve atraso no atendimento prestado ao paciente. Em relação a ausência de um profissional na UTI, o Santa Lúcia ressalta que “ambas as unidades de terapia intensiva e a sala de parto estão integradas, ocupando um espaço único no ambiente. Portanto, a médica não se ausentou do local”. Sobre o possível atraso na aplicação do remédio, o hospital afirma que os medicamentos foram administrados de forma correta, com tempo e dose adequados. Por fim, o Santa Lúcia ressalta que, a respeito da sobrecarga de plantões dos profissionais, “os médicos, do ponto de vista de regulamentação trabalhista, são considerados autônomos, ou seja, o mesmo profissional pode trabalhar em mais de um hospital.”
Confira a entrevista:
Estão convictos de que Marcelo morreu por problemas no atendimento?
Flávio Dino: Por mais que o Santa Lúcia diga que ele recebeu um tratamento de excelência, os documentos mostram o contrário. Não é comum crianças morrerem de asma, ainda mais sob assistência hospitalar. É praticamente impossível que isso ocorra, mas aconteceu com o nosso filho. Não há literatura médica sobre isso, de paciente que morre de asma dentro do ambiente hospitalar, ainda mais em uma UTI. Temos ainda várias dúvidas, como o que deflagrou a crise.
Há quanto tempo ele tinha asma?
Flávio Dino: Ele só teve duas crises graves na vida, a do Maristinha, na véspera de morrer, que foi deflagrada quando ele jogava futebol, e a da UTI, que o levou à morte. Mas ele sempre jogou bola, sempre foi uma criança normal. Nunca precisou de atendimento, nunca foi hospitalizado. O Marcelo fazia futebol três vezes por semana na escolinha da AABB. Meu filho não era um paciente grave de asma, apesar de ter a doença há cinco anos: 24 horas antes de morrer, ele andou de bicicleta comigo do Congresso até a 112 Sul.
Marcelo tomava medicamentos de forma contínua?
Flávio Dino: Ele tomava Combivent, a bombinha, quando precisava, e um remédio oral chamado Singulair. Queremos mostrar que não existiu asma fatal, ocorreu asma que matou por conta de erros do Santa Lúcia.
Quais são os questionamentos com relação à conduta do hospital?
Flávio Dino: A médica Izaura Costa Rodrigues Emídio, que deveria ser a responsável pela UTI onde o Marcelo estava internado, já havia feito um plantão de 12 horas no Hospital Regional de Taguatinga. Ela disse, em depoimento, que foi contatada para cobrir a ausência de um colega no plantão do Santa Lúcia. Às 6h10, quando foi chamada para atender a emergência do Marcelo, estava trabalhando de forma ininterrupta havia mais de 23 horas. Ela não tinha condições orgânicas de prestar um serviço de qualidade.
Além dos depoimentos, que documentos vocês juntaram durante os últimos 40 dias?
Flávio Dino: O atendimento oferecido ao Marcelo contrariou pelo menos três resoluções da Anvisa, as de nº50/2002, nº 7/2010 e nº 63/2011. Isso porque houve interrupção e descontinuidade da assistência na UTI, exatamente quando o meu filho teve uma crise grave de asma. A médica Izaura Emídio, a única da UTI pediátrica, se ausentou por mais de 30 minutos para fazer um parto. Quando o Marcelo tomou medicamento com mais de duas horas de atraso, logo em seguida começou a crise e não havia médico para atendê-lo. A médica demorou inclusive porque foi trocar de roupa. Ficamos revoltados porque, depois, o hospital alegou que havia outros médicos, o que é uma grande mentira.Deane Fonseca: É totalmente absurda a versão de que havia outro médico. Jamais apareceu alguém, os outros dois (doutores João e Augusto) só chegaram quando o Marcelo já estava quase morrendo. Eu fiquei na UTI a noite inteira, não dormi, fiquei lá trabalhando até as 3h da manhã no meu computador, tenho provas, mandei e-mails, e afirmo que ninguém apareceu. Não vamos aceitar que coloquem uma mentira. Tiraram o nosso filho mas não vão tirar o nosso direito à verdade.
O que aconteceu logo depois que a crise começou?
Deane Fonseca: Tive que sair do box da UTI porque a médica estava demorando muito. No caminho para ir buscá-la, a enfermeira voltou e a médica chegou. Não sabia se eu ficava com o meu filho, para ele não ficar só, ou se eu ia atrás da médica. Ele estava ficando roxo, ela tentou algumas coisas, nada funcionava. Até pedi para fazer traqueostomia, dizia, desesperada, para ela tomar alguma providência. Falei para ela: “Você não vê que ele está ficando roxo?”. Até então, ele estava normal, levantou dizendo que estava com falta de ar.
Flávio Dino: Quando a médica Izaura chegou para atender o Marcelo, ele já estava com queda da saturação de oxigênio e braquicardia. A conduta indicada era a entubação, isso está previsto até em um artigo médico que Izaura apresentou à polícia. Mas isso só foi feito 10 minutos após o início da crise, quando o anestesista João chegou. O hospital nunca explicou por que houve essa demora.
Deane Fonseca: A gente acha que, quando os médicos chegaram, o Marcelo já tinha falecido, porque ele já estava com o olhinho semicerrado, sem brilho, a barriga parecia inchada. Ele começou a ficar roxo ainda na mão da Izaura. Ela só usava o ambu (respirador manual).
Marcelo deu entrada no hospital inspirando cuidados?
Flávio Dino: O Santa Lúcia diz que ele era um paciente grave, mas todas as medições de oxigênio feitas durante o dia deram acima de 95%. A medição era feita a cada duas horas e ele estava perfeito. Até as 6h, ele era um paciente que não inspirava nenhuma preocupação. Isso tudo até as 6h, quando começou a crise, e a má administração desse evento o levou à morte em 20 minutos.
Deane Fonseca: Antes, ele estava dormindo placidamente. Eu não dormi hora nenhuma, estava ao lado, sentada em uma poltrona, ficava olhando o soro, acompanhando a respiração dele pelo movimento da barriga.
Qual era o estado de saúde quando ele chegou ao hospital?
Deane Fonseca: Ele desmaiou na escola, mas quando entrou na emergência estava bem. Quando me ligaram do Maristinha, disseram que ele tinha sofrido uma crise de asma e que seria bom que eu fosse lá. Cheguei e ele já entrou no meu carro, com a minha mãe e a auxiliar de enfermagem da escola. Enquanto eu estacionava, minha mãe cuidava da parte burocrática e a enfermeira ficou com ele e foi para a emergência pediátrica. E le estava absolutamente consciente, andando e falando. Mas o médico decidiu interná-lo em uma UTI para que tivesse mais atenção.
Flávio Dino: O Marcelo era um paciente estável. Agora, o Santa Lúcia fala que ele era um paciente grave. Mas como era um paciente grave se não colocaram um pneumologista, não fizeram exames, não garantiram médico?
Por que Marcelo não foi entubado no começo da crise?
Flávio Dino: Não sei se foi o cansaço (da médica), se ela não discerniu ou não tinha capacidade técnica para entubar o Marcelo. Por que ela não tomou a única atitude que podia tomar? A auxiliar de enfermagem diz, em depoimento, que pediu à mãe de Marcelo que ficasse segurando a mangueira de oxigênio na parede porque uma peça quebrou. Isso é um disparate. A criança entrou em crise respiratória e não tinha ninguém para segurar a mangueira.
Deane Fonseca: Eu pedi para entubar, eu só não sabia o nome, eu dizia: “Faz traqueostomia, pelo amor de Deus”. Qualquer leigo sabe que é preciso tomar uma medida radical em uma situação dessa.
Como foram os últimos momentos de vocês com Marcelo?
Flávio Dino: A Deane me ligou e disse que era para eu correr pra lá porque o Marcelo estava tendo uma crise. Imaginei que ele estivesse fazendo uma nebulização. Quando estava na porta do hospital, a Deane ligou de novo para dizer que era grave. Entrei correndo, em pânico, umas 6h30. Achei que fosse chegar e falar com o meu filho. Mas o Marcelo estava inconsciente, a Deane chorando em um canto, um dos médicos fazendo massagem cardíaca, o outro com um equipamento na mão, e a Izaura pálida, sem ação, a quase um metro da cama, fora da cena. Eu perguntava o que estava acontecendo, eu e Deane nos afastamos da cama e percebemos que não tinha solução. O João já pedia adrenalina, o outro médico já me olhava com olhar de pesar.
Deane Fonseca: O João sacudiu a cabeça, ainda assim eu não acreditava. Foi essa cena que assistimos e estamos presos nela. Os médicos saíram, a Izaura disse “O Marcelo não resistiu” e saiu.
Flávio Dino: Foi quando liguei para o meu irmão entrar em contato com a polícia, com o Ministério Público. Já tinha clareza, naquele momento, de que algo estava errado. Tem no prontuário que o próprio médico pediu uma consulta com pneumologista. Essa avaliação nunca foi feita.
O hospital se contradisse sobre o estado de saúde de Marcelo?
Flávio Dino: O próprio médico do hospital pediu exame de um pneumologista no dia 13. Essa avaliação nunca foi feita. E o Santa Lúcia não diz o motivos, alega apenas que não era necessário, mas foi o médico deles que pediu. Eles têm que decidir. Ou erraram por ter tratado um paciente grave como paciente sem gravidade, o que explicaria essa série de descasos, ou, de fato, o paciente era grave e eles não tomaram as providências que eram necessárias.
Vocês vão à Justiça?
Flávio Dino: Temos convicção que houve uma série de erros no Hospital Santa Lúcia. Mas vamos aguardar a conclusão do inquérito para tomar providências. Deane Fonseca: Vou lutar até minha morte para que tudo seja esclarecido. E não é só a perda do nosso filho que nos move. Estamos nos rebelando contra essa naturalização da morte nas mãos de pessoas que deveriam salvar. Nossa luta é para que isso não aconteça, pelo menos não como aconteceu com o Marcelo. Nenhum dinheiro vai nos calar.
Reunirão mais documentos?
Flávio Dino: Temos muita confiança no profissionalismo da polícia e do Ministério Público. Essa investigação é importante para trazer outros elementos. Mas o que já temos é suficiente para caracterizar o mais doloroso, que é saber que o nosso filho devia estar vivo, conosco. Além da dor derivada dessa convicção, a gente só vai fazer alguma coisa prática depois que o inquérito terminar, que analisarmos outras provas que possam surgir. Nossa convicção é muito clara. Temos a expectativa de que o inquérito corrobore e traga resposta a algumas perguntas.
Depois da morte do Marcelo, vocês se tornaram porta-vozes de muitas pessoas que passaram por problemas dentro de hospitais. Como vocês encaram isso?
Flávio Dino: Hoje mesmo (quinta-feira), recebi uma ligação de uma pessoa de Santos (SP), uma mãe que nos procurou para falar da filha que morreu no Santa Lúcia após uma crise renal. Quando acontece uma tragédia dessas, a coisa mais difícil do mundo é conseguir se segurar em alguma coisa. Onde você se segura? Em que se ampara? Você constrói uma série de recursos. O nosso caso, além das relações afetivas, qual é a questão principal que nos move? É esclarecer esse caso do Marcelo para servir de referência para a sociedade. Marcelo não estava fazendo uma cirurgia cardíaca, uma cirurgia no cérebro, que você pode admitir que acontece. Ele não vinha de uma longa enfermidade.